sexta-feira, 10 de julho de 2009

O Merrow

Cheguei essa manhã em Porto Holandês, Alaska. Meu tio tinha dito que ia estar me esperando lá, mas eu não encontrei ninguém. Fiquei lá por horas até que finalmente decidi procurar um hotel onde ficar, é inverno aqui no Alaska e embora já não faça tanto frio quanto fazia uns 30 anos atrás, ainda é desagradável ficar tomando friagem.

Mais tarde naquela noite bateram na porta do meu quarto, era um cara baixinho com toca de lã, na casa dos 40, rosto marcado. Tive certeza que era um marinheiro. Disse que estava lá a mando do meu tio, pra me levar pro barco assim que eu pudesse. Parecia urgente, achei melhor me vestir e ir com ele.

Meu pai nunca me falou muito do meu tio, os dois eram distantes, não que fossem brigados, só não se falavam muito. Eu nunca nem tinha visto o cara, ele morava no Alaska havia muito tempo e era daqueles tipos que não se deixam fotografar. Até então meu tio era um mistério pra mim, mas não exitou nem por um momento ao me arrumar emprego no barco dele quando meu pai pediu. Palavras do meu pai "Seu tio vai fazer você virar homem". Estou certo de que meu pai tinha a melhor das intenções me mandando pra cá.

Chegando no barco, longo e envelhecido, de um azul pálido, corri os olhos pela traseira onde estava o nome da embarcação, "The Merrow".

O baixinho me levou até a cabine do capitão, onde na porta eu li "Captain Troll", estranhei, mas imaginei que fosse um apelido do meu tio, já tinha ouvido falar que ele era um daqueles caras enormes que começaram a nascer nas décadas de 80 e 90, antes das pragas começarem a fazer os humanos nascerem cada vez mais frágeis.

A porta abriu e o cômodo atrás dela estava escuro, nada convidativo, uma voz rouca me chamou em alto e claro português paulista "Pode entrar Jr. eu estou aqui esperando". Entrei e olhei em todas as direções tentando captar como era aquela sala. Era um cômodo de tamanho médio, uma cama num canto, uma mesa com um computador no outro, no fundo um frigobar e uma poltrona, sentada nela, estava meu tio, que eu ainda não consegui ver por causa da iluminação precária.

"Eu gosto de ficar sentado no escuro. Mania antiga. Pode acender a luz, o interruptor está do seu lado." Eu achei o interruptor e acendi a luz, foi estranho.

Ele era imenso como tinham dito, mesmo sentado. Estava com uma jarra de 1l. na mão, cheia até quase a boca de um líquido que parecia muito ser uísque. Levantou-se com dificuldade e se aproximou mancando. Reparei que a perna direita não passava de um toco de madeira escura. No rosto uma cicatriz enorme passava por cima do olho direito, que era branco e cego. O cabelo muito preto dava os primeiros sinais de grisalhice. Usava costeletas gigantes e mal aparadas, muito negras. Tinha um sorriso torto, meio malicioso, mas ainda assim confortante. Estendeu a mão pra mim. Quando segurei sua mão, o aperto de quase quebrar meus ossos nem foi o mais estranho, mas reparar que na mão direita faltavam os dois últimos dedos.

"Foi o mar. Ele me tirou muita coisa, menos o que eu queria que ele tirasse."

Conversamos então um pouco, em português mesmo. Quando alguém entrava ele tinha a cortesia de falar em inglês, mas assim que saíam ele voltava a falar em português, gostava muito de falar, era articulado, vocabulário extenso, percebi sem muito esforço que era um homem inteligente, a despeito de sua aparência quase fantasiosa de Capitão Pirata.

Ele me contou como tinha chegado ao Alaska 20 anos atrás em busca de emprego nos barcos de carangueijo, a dificuldade que teve em arrumar emprego, mas tudo foi compensado na primeira temporada no mar, ganhou muito dinheiro, resolveu ficar mais algum tempo e a cada temporada ganhava mais e mais, enquanto economizava pra comprar seu próprio barco. Estava no Alaska há 6 anos quando sofreu o acidente, um guindaste despencou em cima dele. Perdeu o olho, dois dedos e a perna, quase morreu na verdade.

Sem mulher e filhos no Brasil e desfigurado pelo acidente, ele desistiu do amor, resolveu ficar no mar pro resto da vida, nunca mais foi ver a família ou sua terra natal. Vez ou outra recebia uma foto do mais novo bebê ou a notícia do morto mais recente, mas pouco se importava, jamais voltava, jamais mandava notícias. Logo pararam de incomoda-lo, mas sabiam que ele estava lá em algum lugar, naquele deserto gelado.

"Do que você fugiu Jr.? Por que veio pra cá?" Eu não soube bem o que responder, sabia no meu íntimo a resposta, além de trabalhar, ganhar dinheiro e agradar meu pai, eu estava fugindo de algo. De alguém. Dela. Achei que seria honesto contar ao meu velho tio tudo sobre Julia. Emocionado eu dei detalhes dos nossos desencontros e de como eu gostava dela, mas o destino nos impedia de estarmos juntos. Assim que terminei, meu tio sorriu. O sorriso virou uma gargalhada rouca e grave. Ele terminou sua jarra de uísque depois disso.

"Eu também fugi de uma garota quando vim pra cá Jr. Por isso eu ri, tudo é tão repetitivo, elas sempre são perfeitas, nós nunca podemos suportar a idéia de viver sem elas e mesmo assim, aqui estamos nós, no meio do nada. Fugir não resolveu pra mim garoto e não vai resolver pra você. Trabalhe aqui comigo esse inverno, mas volte pra casa assim que puder e lute por ela! Não se pode fugir de si mesmo, eu não te culpo por tentar, mas aproveite o conselho de quem já tentou e falhou. Ficar aqui sozinho só vai fazer piorar."

Eu trabalhei no Merrow o inverno todo, voltei totalmente mudado pra casa, meu pai estava certo. Meu tio, o Capitão Troll, fez de mim um homem. Quando eu voltei, Julia tinha secretamente esperado por mim, namoramos e dois anos depois íamos nos casar. Fiz questão de enviar um convite de casamento ao meu tio, mas ele nunca veio como eu imaginei que não viria.

O mais triste foi receber a notícia de que no dia do meu casamento, sozinho dentro do Merrow, com a barba feita e o cabelo cortado, sóbrio como não estivera em anos, meu tio usou uma corda para se enforcar. Os médicos disseram que ele quebrou o pescoço na queda. Ser tão grande deve ter valido a pena pra ele no final.

Dos relatos de A. G. Silva Jr. dezembro de 2034

Um comentário:

Doug disse...

Eu to emocionado de ler essa merda. Sérião.

Espera 4 anos pra ir pra pesca do Salmão? Vc não vai sozinho.

 
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