segunda-feira, 27 de julho de 2009

Morre um poeta, nasce um rufião...

No meio do pântano havia uma mansão, tinha a aparência antiga e podre, porém imponente. O interior estava quase completamente vazio, poucos móveis, muitos deles cobertos por pesados lençóis brancos. Camadas seculares de poeira cobriam tudo no interior. Na imensa sala de estar, uma lareira apagada e uma poltrona de camurça vermelha. Sentado na poltrona, observando a noite clara lá fora pela janela embaçada de sujeira, um jovem de cabelos negros e olhos furiosos. Parecia impaciente sentado, balançava a perna direita, parou. Levantou-se e caminhou vagamente pela sala, indo até um ponto ou outro.

Ecoaram passos desiguais no hall de entrada, alguém vinha se aproximando. De repente a lareira se acendeu e um ferro de revirar brasas caiu com a ponta no fogo.

Na entrada da sala de estar apareceu um outro jovem, a mesma constituição, alto e gordo. Eram idênticos na verdade, como gêmeos, mas o recém-chegado tinha sobre o olho direito uma faixa de pano escuro, um tapa-olho improvisado ainda manchado de sangue. A perna direita era amputada logo abaixo do joelho e no lugar da perna uma prótese mal feita de madeira escura.

Os dois se encararam longamente, o ar da sala ficando cada vez mais pesado. O caolho tinha uma aparência ainda mais cruel que seu gêmeo, mas o outro mantinha firme nele um olhar de sagacidade, como se ele soubesse de algo que ninguém mais sabia.

Na poltrona vermelha, uma enorme aranha caminhava por cima da camurça poída, as pernas cabeludas vagarosamente ganhando espaço.

- Você tem certeza? - O caolho perguntou com seriedade.

O outro jovem olhou pela janela, o luar iluminando os charcos, ao longe os grilos cricrilando e alguns sapos coaxando.

- Tenho certeza. - Respondeu convicto.

O caolho mancou até o outro, esse por sua vez se deitou no chão, fitando o teto com determinação. O coxo se ajoelhou com extrema dificuldade, seu corpo enorme apoiado todo no joelho manco. Ele revirou um bolso do casaco pesado que vestia e sacou uma navalha de prata de aparência magnífica, muito brilhante e afiada. Colocou-a no chão empoeirado e voltou a revirar os bolsos.

- Onde raios eu os meti? - resmungou. - Aqui!

Tirou do bolso um par de esferas amarelas e gosmentas, com uma olhada melhor, percebia-se que eram dois olhos de animal. Colocou-os no chão e apanhou a navalha novamente. De maneira dramática, abriu a navalha e a pontou para o céu, a luz da luz refletiu na lâmina afiadíssima.

- Você tem certeza? - O caolho perguntou uma segunda vez.

- Tenho certeza! - O jovem respondeu ainda olhando fixamente para o teto parecendo muito determinado.

O outro encarava o rapaz deitado no chão com um olhar que misturava apreensão e pena.

- Faça! - Ordenou o paciente.

O caolho desceu a navalha sobre o olho direito do jovem, cortou fundo a carne e o sangue escorreu livremente enquanto o rapaz gritava de dor, mas ainda perfeitamente parado deitado no chão. Com a parte chata da lâmina o Caolho puxou pra fora o olho que saiu ainda inteiro da órbita, preso apenas por um cordão carnoso no fundo, a lâmina da navalha cortou o cordão e o primeiro olho foi removido. Com desleixo o cirurgião largou o olho no chão empoeirado, ia começar a repetir a operação no lado esquerdo. Sem hesitar, enfiou fundo a navalha na carne do rapaz novamente e em pouco tempo, apesar dos gritos, o segundo olho foi removido.

O coxo se levantou vagarosamente e foi até a lareira, pegou o ferro de revirar brasas, a ponta que tinha caído no fogo estava agora vermelha e incandescente. Ele voltou até o jovem deitado que gemia de dor. Pegou o primeiro dos olhos amarelos de besta e ligou os dois cordões carnosos com a ponta quentíssima da ferramente de metal, o rapaz nesse momento se debateu e urrou. Com calma o Caolho enfiou o olho na órbita e recosturou as pálpebras. Depois ele repetiu o processo doloso de fundir a carne com o ferro quente e novamente costurou as pálpebras, mas dessa vez do olho esquerdo.

Acabara a "cirurgia", ou pelo menos o ritual, e o macabro aleijado se afastou do paciente. O jovem se sentou com os olhos fechados, depois com algum esforço ficou de pé e então pela primeira vez ele abriu os olhos.

Foi surpreendente. A mansão, antes velha e decrépita, era agora um luxuoso palácio, enfeitado de ouros e pratas e pedras preciosas por todos os lados. Os móveis, agora muitos, eram feitos de madeira de lei e estavam limpos e brilhantes. As paredes e o chão, antes vazios e poeirentos, estavam agora enfeitados com tapetes e tapeçarias esplêndidos. Ao olhar pela janela, os vidros estavam claros como cristais, e a paisagem lá fora não era nada inferior a maravilhosa, um prado imenso e verdejante, onde brisas mornas sopravam de todas as direções, as flores mais coloridas que o rapaz jamais vira estavam coroadas de joaninhas e borboletas e abelhas. Um agradável ruído de cigarras vinha de longe, como nas tardes de verão da infância do jovem.

Ele procurou com seus olhos de besta o seu gêmeo de aparência cruel, mas encontrou o rapaz com cabelo e barba aparados, o olho direito estava coberto por um tapa-olho negro de veludo costurado com fios de ouro e a perna amputada dava lugar a uma prótese de platina incrivelmente brilhante.

- Deu certo. - O jovem recém-operado comentou ainda impressionado com tudo que via.

- Sim, deu certo. Você abriu mão dos seus olhos sensíveis de poeta, seus olhos sinceros e honestos de amante, seus olhos leais de amigo. Por um par de olhos de besta, cínicos, mesquinhos e fúteis! Você agora vê o mundo do mesmo jeito que todas as outras pessoas.

- Eu vejo o mundo como um ignorante. - O jovem disse sombrio.

O caolho se abaixou no chão e recolheu os olhos de poeta, guardou-os no bolso.

- Não vou mais precisar deles, pode jogar fora.

- Vou guardar. Algo me diz que você vai querer de volta.

O cirurgião saiu da mansão e meteu o pé numa poça de lama, os sapos coaxaram no pântano da realidade, mas lá dentro, no palácio da ignorância, tudo estava bem.


Gordon "Troll" Banks

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