sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O Inferno de Gordon, parte VI: O Templo da Flor de Lótus.

Do alto da última montanha de gelo, avistaram no vale abaixo um templo imenso. Observaram estóicos o monge, o rapaz e o urso, cercados por uma nuvem azulada de fadinhas animadas com o tempo um pouco mais ameno fora da geleira.

- Sabe quem vive ali? - Gordon perguntou ao mendigo casualmente.

- Sim.

- E quem seria?

Beggar sorriu.

- Eu.

Desceram pela encosta da montanha e finalmente pisaram numa grama azul e macia, poucas árvores magras estavam entre eles e o templo. Caminharam por alguns minutos, até chegarem na entrada principal do templo, onde eram aguardados por uma figura alta de pele queimada e olhos de águia.

- Solidão! - Gordon disse com ar surpreso.

O Cavaleiro Solitário vestia vestes simples de monge, como as de Beggar. Era ainda magro e musculoso, mas seus longos cabelos haviam sido raspados e pela abertura da camisa, podia-se ver no peito dele uma ferida horrível que ainda estava aberta e infeccionada.

- Bem vindo Convicto, e vocês também Sabedoria, Desespero, Princesas da Inspiração. - Sua fala já não tinha traço algum de sua antiga arrogância, ele parecia sereno e calmo, quase sereno demais, anestesiado.

- Você disse que essa era sua casa Beggar, que significa isso? - Gordon voltou-se sério para o monge-mendigo.

- Razão ordenou que Sabedoria guiasse sempre o Amor. - Gordon estremeceu à mera lembrança de que um dia o Cavaleiro tivesse sido o Amor do Vortex, e que hoje fosse apenas Solidão. - Eu acolhi o pobre bastardo em minha morada para que ele aprendesse de mim, que se recompusesse e quem sabe um dia...

- Basta! Não quero ouvir! - Gordon interrompeu furioso.

Afastado da discussão, Desespero engordou quase 100kg, aumentaram suas presas e garras, a besta rosnou satisfeita.

- Acalme-se Convicto. - Beggar tentou.

- Não! Não há nada que eu possa aprender da Solidão! Ainda acorrentado naquele templo, ainda chamado Amor, talvez você pudesse me ensinar algo que nos ajudasse nessa hora, mas sendo quem você é agora seria uma perda de tempo parar aqui e conversar com você! - Gordon estava aos berros, o rosto vermelho, os olhos inflamados e negros.

- Gordon, por favor. - Disse o Cavaleiro.

- Não!! Já disse que não quero ouvir!! - Gordon se precipitou e enfiou um soco no rosto de Solidão, ele cambaleou para trás e caiu sentado no chão.

Desespero, com uma agilidade desproporcional ao seu corpo imenso, levantou-se e se colocou ao lado de Gordon rosnando para ele, no processo, engordou 300kg, estava enorme agora, mesmo sobre as quatro patas tinha quase dois metros e meio de altura.

- Tão cedo Convicção? Achei que você fosse durar mais fedelho! - Disse a besta.

- Gordon, acalme-se! Controle-se! Acredite que algo de bom pode sair dessa situação! - Beggar implorou.

Gordon fitou o urso com ódio, depois seu ódio foi ainda maior quando encarou Solidão, então finalmente viu Beggar e ao redor dele as fadinhas azuis que riam e brincavam alheias à situação tensa que se desenrolava. Rendeu-se e sorriu ao ve-las.

- Preciso de tempo pra me acalmar.

- O tempo que precisar Convicto. - Disse Beggar. - Afaste-se Desespero! Vamos para dentro do templo. Você também Solidão.

O rapaz caminhou pra longe da entrada do templo, os portões de madeira foram ficando menores a medida que ele subia uma colina onde soprava uma brisa gelada e inquietante. Olhou ao redor, colinas e mais colinas daquela grama azulada e fofa, um oceano de colinas azuis. Sentou-se.

Sentiu um puxão no cabelo e percebeu que tinha sido seguido pelo batalhão de fadas azuis, elas estavam se estapeando pelos melhores lugares em seus ombros. Finalmente sentaram-se todas.

- Beggar está pedindo demais de mim dessa vez. Dar ouvidos àquele traidor, àquela coisa maldita.

Uma voz tranquila veio de algum lugar atrás de Gordon:

- O destino do Vortex depende de seu aprendizado nessa jornada, você sabe disso.

- Mas o que Solidão poderia me ensinar?! É absurdo achar que ele tem qualquer informação que seja. - Gordon retrucou sem olhar para trás.

- Você reage assim porque Solidão é a criatura que você mais teme Convicto.

- Eu não o temo!

- Teme sim. E não poderia ter ficado mais claro pela maneira como você se comportou lá embaixo. Desespero está se fortalecendo da sua fraqueza.

Gordon não disse nada por um tempo, ficou brincando de cabo de guerra com as fadinhas e um pedaço de grama alta.

- Precisamos que você aprenda a tirar força das dificuldades que enfrentar Convicto. De você depende o Vortex e a existência de todos nós. Lembre-se de Ananasi e Slayer, lembre-se de Tornado e Everton, aprenda a usar as armas que eles lhe deram, selecione o que você quer fazer, analise como usar isso e então entre em ação!

- É tão difícil...e eu estou sozinho, tudo recai sobre mim...como posso saber que estou no caminho certo? Às vezes eu penso em só me sentar aqui e não fazer nada, deixar a maldita loucura tomar conta de tudo. Seria tão mais fácil.

- Você realmente acredita nisso Convicção? Porque se acreditar, estamos todos condenados. Se você realmente acredita que não fazer nada é a melhor solução, nem se dê o trabalho de levantar, porque antes que você perceba, a Serpente Emplumada vai dominar tudo o que existe de importante aqui para nós.

- O que é essa Serpente afinal? Slayer falou dela.

- Acredite que você pode fazer a coisa certa Convicto, salve o Vortex e a todos nós e aí talvez, você jamais precise saber o que é a Serpente.

- Só gostaria de ter todos os detalhes.

- ...

- Você já foi embora não é?

Gordon se virou para ver a colina vazia como estivera o tempo todo, suspirou.

- Vamos meninas. - Disse levantando-se. - Nós temos que ter uma conversa com aquele cara lá embaixo.


A SEGUIR: O Inferno de Gordon, parte VII: O Sermão da Solidão e da Sabedoria.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Dilema de Ezerhorden

Ezerhorden escutava com atenção tudo que a criaturinha a seu lado dizia, o pequeno Goblin o cativava.

- Me mate. É o único jeito de não deixar as pessoas más descobrirem onde fica o reino secreto do Rei-Dragão.

- Você está louco? Não vou mata-lo a troco de nada!

- Mas é o único jeito, o Rei-Dragão tem que ser avisado! O reino dos mortos é o meio mais rápido!

- Reino dos mortos? Espere aí...o Rei-Dragão é, Samma? Como em Samma, o Deus da Morte?

- Sim!

- Por essa eu não esperava.

Ezerhorden parou pra pensar. Admirou o pequeno Goblin por ser tão leal a seu senhor, afinal, para um servo do deus da morte, nada mais nobre do que morrer e finalmente se unir a seu mestre no outro mundo. Aquela missão não era sua. Resolver finalmente dar um passo atrás.

- Feche os olhos pequenino.

Goblin fechou seus grandes olhos amarelos pela última vez. As mãos enormes de Ezerhorden torceram seu pescoço matando-o imediatamente.

O gigante cavou uma sepultura para a criaturinha. Plantou mudas de hibiscos brancos e azaléas sobre o pequeno túmulo, voltaria ali ainda um dia para visitar o pequeno e valente servo de Samma.

Minutos depois de enterrar Goblin, fez uma prece.

- Grande Samma, deus do omega, do fim, da morte. Hoje eu espero não te-lo ofendido ao lhe enviar seu servo antes do tempo. Mas terá mesmo sido antes do tempo? Enfim, o pequeno Goblin foi leal e corajoso e eu espero que Vossa Divindade tenha aí em seu reino um lugar reservado a um servo como ele. Ele leva consigo uma mensagem que parece ser importante que chegue até você.

A oração foi interrompida.

*****

Naquela noite, longe de todos no acampamento, Ezerhorden foi até uma clareira na mata, lá ele se entregou aos espíritos e sua forma mudou. Seu corpo foi coberto de pelos negros, suas pernas se curvaram e cascos brotaram de suas botas, um par de chifres negros enfeitou uma cabeça de bode no alto do pescoço agora muito mais musculoso.

- Espíritos me ouçam! Preciso de um favor!

Apareceu na clareira a forma conhecida de Ascor, o shifter que fora um dia o mestre de seu mestre.

- Diga jovem Ezerhorden, o que os espíritos podem fazer por você esta noite?

- Mestre, mandei para as profundezas da morte hoje um ser chamado Goblin, gostaria que vocês o guiassem em segurança até o mundo dos mortos. Peço proteção pelo pequeno.

- Posso saber o porque?

- Culpa. Me sinto mal por te-lo matado, mas senti que era o certo a se fazer na hora. Ele leva uma mensagem importante ao rei dos mortos.

- Ele será protegido então, fique seguro.

O gigante voltou para dormir ao lado de seus companheiros de aventura.

[Trechos de uma aventura de RPG jogada por mim com meu personagem Ezerhorden.]

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O Inferno de Gordon, parte V: Nanook, the Dark Hunter of Lust.

Caminhavam os heróis numa tundra gelada e desértica, Gordon na frente, Beggar à direita e Desespero à esquerda. As fadinhas estavam todas pousadas nos pelos grossos do urso pardo, enroladas e confortáveis, a salvo do frio, rindo e cantando.

O deserto gelado se extendia por quilômetros, plano, hostil, estéril. Nada se via além de um branco puríssimo e cegante. Os viajantes cobriam os olhos semi-cerrados e andavam contra o vento cortante, a sensação era de um frio extremo, mesmo assim, Beggar não vestia nada além de seus trapos de costume. Gordon estava agasalhado com roupas pesadas que comprou no vilarejo.

Caminharam no que eles achavam, quase com certeza, que era uma linha reta durante horas. Não viram nada além do céu azul claro se chocando com o chão branco e congelado.

- Tem certeza de que você sabe pra onde está indo? - Beggar perguntou alteando a voz pra ser ouvido acima do barulho do vento.

- Eu tenho que acreditar que sei! - Gordon gargalhou aquela risada grave e curta. - Toda a existência aqui no Vortex se sustenta sobre esse tipo de coisa, não? Você sendo sábio, Razão sendo lógico, o Golem sendo inocente e eu...acreditando!

Beggar apenas sorriu e balançou a cabeça, continuou seguindo Convicção.

Eles finalmente avistaram, depois do que pareceram mais de 18 horas de caminhada, um vulto negro muito pequeno no horizonte, parecia um homem. Seguiram naquela direção. Ao se aproximarem, constataram que era realmente um homem, estava vestido com um traje de esquimó, feito de um couro azulado e grosso. Estava com a cabeça coberta por seu capuz e no rosto usava uma máscara de madeira em forma de óculos, a pele do rosto era muito branca. O homem era alto, quase anormalmente e segurava uma lança longa e de aparência poderosa. Ele estava guardando um buraco de um metro no gelo, a um metro de profundidade a água escura e gelada estava calma.

- Olá. - Gordon começou, mas foi bruscamente interrompido pela voz seca e rouca do esquimó.

- Silêncio!

Um silêncio desconfortável se estendeu por alguns segundos.

- Eu sou Nanook. - O caçador sussurrou. - Nã - Nuk. O Caçador Sombrio da Luxúria. Silêncio!

Um vulto escuro se mexeu na água, Nanook precipitou sua lança que atingiu carne gorda e macia, o sangue esguichou e ele puxou sua presa pra fora d'água. Dando gritos orgasmáticos, uma criatura se debatia na ponta da lança, era grande e lembrava uma foca, mas tinha uma cabeleira espessa e ruiva na cabeça, seios imensos e flácidos, tinha cor de pele humana clara, não era um animal comum. O caçador sorriu com perversão enquanto sacava uma faca de caça do cinto, dirigiu a lâmina até a garganta da presa e sem hesitar cortou-lhe o pescoço que jorrou sangue. Gordon e os outros apenas assistiam ao espetáculo bizarro sentindo-se confusos e impotentes.

- Mais uma. - Riu rouco o esquimó.

- O que era isso? - Gordon perguntou com genuína curiosidade.

- O que era? Uma mulher oras! Estou caçando essa aqui há dias, finalmente a fodi! - gargalhou alto e sua voz rasgada incomodou os tímpanos de todos.

Gordon fitou Beggar em busca de conselho, mas o monge-mendigo parecia tão confuso quanto ele.

- Bom, você sabe o que está acontecendo? A espiral de loucura na qual o vortex está se transformando e como eu devo impedir que isso ocorra?

Nanook agora estava abaixado perto da carcaça, ele fazia pequenos cortes descomprometidos na carne.

- Ouvi boatos, todos ouvimos. Honestamente? Não me importo.

- Não se importa?

- Não. Vivo aqui sozinho desde muito tempo atrás, nesse deserto branco. Nunca me deixaram sair, não de maneira apropriada pelo menos. Sou um prisioneiro aqui Convicto. - Ele se levantou e olho pro horizonte. - Ah, as coisas que eu poderia fazer se me deixassem sair daqui. Você ia viver a vida Gordon, finalmente ia viver a vida.

- A julgar pelo que acabei de ver, não sei se quero o que você oferece.

Nanook olhou para a carcaça, de súbito correu pra sua lança, se voltou pro buraco e investiu contra a água. Uma criatura semelhante à primeira, mas dessa vez de cabelos loiros e seios pequeninos se debateu na ponta da arma. O esquimó riu alto.

- Aqui está mais uma Gordon! Você a quer? Quer fode-la? Eu posso fazer acontecer!

Gordon dirigiu um olhar de nojo ao caçador e permaneceu em silêncio.

- Bah! - Nanook sacou sua faca novamente e enfiou-a nas tripas do animal que se debateu de dor, deu-lhe uma facada no peito e outra então no pescoço, logo a criatura parou de se mexer. - O poder que eu poderia lhe dar Gordon, as mulheres que conquistaríamos juntos! Se ao menos você reconhecesse o seu potencial, mas não, insiste em se rebaixar, se fazer inferior!

Imperceptívelmente, Desespero engordou 40 quilos, suas presas ficaram ligeiramente maiores e ele rosnou baixinho satisfeito.

- Não é isso que eu quero Nanook. Caçar mulheres como se caça comida, é nojento.

- Você interpreta muito bem esse papel, mas acredita mesmo nisso Convicto? Nunca lhe passou pela cabeça como seria? Só se entregar à Luxuria sem pensar em mais nada? Sem culpa, sem existencialismo, sem pensamentos profundos? - Aos pés do esquimó, em pleno gelo, brotou um pequeno ramo verde.

Gordon ficou em silêncio ouvindo seus próprios pensamentos. Beggar o observava com preocupação. Desespero estava deitado no gelo com ar satisfeito e as fadinhas ainda estavam enroladas nos pelos grossos do urso.

- Eu quis isso. - Gordon cedeu. - Eu quis isso por muito tempo Nanook. Ser como todos os outros. Ser fútil, vaidoso, vão. - O ramo verde deu um broto roxo. - Queria não temer meus sentimentos, nem mesmo senti-los! Queria ser só mais uma casca sem conteúdo algum, viver pra beber, fumar e foder! - O broto se abriu numa linda flor. - Mas eu não quero mais isso. Eu pude perceber o quão infelizes são essas pessoas. Com medo de tudo, sem saber pra onde ir, sem saber o que fazer além de beber, fumar e foder. Hoje não existe mais esse desejo em mim Nanook, de ter mil mulheres. Eu quero algo real caçador, algo no que acreditar e não somente mais uma presa. Você não tem nada pra me oferecer, vai continuar preso nesse deserto branco, estéril e PURO.

A flor roxa aos pés do esquimó enegreceu e murchou, caiu no solo gelado destruída.

- Entendo. - Disse Nanook. - Mas eu não cessarei de existir, vão existir outras oportunidades pra me libertar. Se a loucura não se instalar no Vortex, alguma outra coisa eventualmente vai. E então eu vou caminhar livremente Convicto.

- Como saio daqui? Quem é o próximo?

- Siga naquela direção. - Nanook apontou o Leste. - Vão saber quem é o próximo quando deixarem as geleiras.

Gordon não se despediu, apenas começou a andar na direção sugerida. Beggar fez uma ligeira reverância e se retirou e atrás deles foi Desespero, um pouco mais gordo, um pouco mais forte e um pouco mais faminto.

Nanook os observou se afastar durante vários minutos, até virarem pontos negros no horizonte. Voltou-se pro buraco de água escura, algo se mexeu lá embaixo. Ele largou a lança no chão.

- Foda-se. Broxei.


A SEGUIR: O Inferno de Gordon, parte VI: O Templo da Flor de Lótus.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O Inferno de Gordon, parte IV: Everton, pois seu pior inimigo é sempre você.

O mar urrava furioso e jogava o pequeno barquinho de um lado pra outro sem piedade em ondas de 15 metros de altura. Lá dentro da pequena cabine da embarcação, Gordon, Beggar e Desespero se seguravam como podiam nos móveis e paredes. Uma poltrona solta ia e vinha atingindo os joelhos deles várias vezes, as fadinhas riam cada vez que isso acontecia, empoleiradas numa prateleira vazia.

- Odeio o mar! - Gordon gritou por sobre o barulho da tempestade.

- Eu também posso pensar em alguns lugares melhores pra estar agora. - Desespero admitiu.

Beggar apenas guardou silêncio e deu um sorrisinho com o canto da boca.

A tempestade começara assim que a terra sumiu de vista no horizonte e durava cerca de dez ou onze horas. Estavam todos exaustos, mas não parecia que aquilo ia durar muito mais.

- Slayer disse que ele nos encontraria! - Beggar repetia a cada meia hora, o barulho das ondas encobrindo partes da sua frase.

Logo escureceu e a tempestade, mesmo sem aumentar de intensidade, parecia ainda mais sinistra. Os raios iluminavam a superfície do mar e mais de uma vez Gordon jurou ver sombras imensas debaixo da água, leviatãs marinhos prontos pra atacar. Mas nunca atacaram.

Na alta madrugada o mar pareceu finalmente se cansar, embora ainda chovesse forte, mas o vento diminuiu e o barco estava mais estável. Gordon saiu da cabine pra tentar ver alguma coisa, no horizonte ele avistou uma luz que reconheceu como sendo uma outra embarcação.

O segundo barco era um pouco maior do que o barco onde estavam, tinha uma aparência mais segura e "experiente". Conforme se aproximou dava pra ver uma pintura azul pálida e as letras grandes na lateral que indicavam o nome da nau, "The Merrow". Na proa estava o homem que Gordon menos queria ver ali, seu gêmeo identico, Everton. Ele jogou uma corda grossa sobre o convés.

- Subam! - Ordenou.

Após a difícil tarefa de transferir um urso do tamanho de Desespero de um barco ao outro, estavam todos bem, o anfitrião guiou-os pro interior, uma cabine escura e solitária onde na porta lia-se "Captain Troll".

Everton, embora identico a Gordon, tinha alguns traços bem interessantes pra distingui-los. O capitão do Merrow não tinha a perna direita, que era substituída por uma perna tosca de madeira escura. Seu rosto era deformado por uma cicatriz larga que cruzava por cima do seu olho direito, branco e cego. E finalmente a mão direita só tinha três dedos, faltando o anelar e o mindinho.

- Essa jornada é inútil! - Ele bradou enquanto pegava copos e garrafas num armário. - Você é fraco demais pra conseguir. - Concluiu o capitão.

- Agradeço o voto de confiança cara. - Gordon disse cínico.

- Calado. - Ele serviu bebidas a todos e mancou até uma poltrona na qual se jogou desajeitado. - Eu falo, você escuta, pega tudo que eu disse e faz o que quiser com isso. É assim que tem funcionado não? Você ouve um sermão de cada um de nós e no final vai ter que se virar pra evitar o fim. Evitar o inevitável. - Ele fungou pelo nariz.

Gordon ficou em silêncio, visivelmente contrariado.

- Vocês me chama de Egoísmo. - Everton começou. - Justo. Vamos falar do quanto somos egoístas então.

Ele deu um gole em sua bebida e todos repetiram o gesto, pra surpresa de todos, era apenas suco de guaraná.

- Você é o unico que pode se salvar Gordon. E você também é o único que pode se condenar. Salve-se e vai salvar a todos, desista e estamos todos fodidos.

- Vou precisar de mais que isso. Como eu posso superar minhas limitações e fazer o que é preciso pra alcançar nossos objetivos?

Caiu um silêncio sobre o cômodo, quebrado apenas pelas fadinhas voando pra todos os lados e brincando entre si, falando naquela língua estranha e ininteligível delas.

- Não sei o que responder.

Beggar se levantou.

- Então estamos perdendo tempo aqui. Vamos em frente.

- Sente-se velho! Eu tenho uma coisa ou outra pra dizer...só não sei responder essa pergunta, não da maneira como ele perguntou. Acho que superar suas limitações e fazer o que é preciso não é uma fórmula mágica. Você terá que tratar cada caso como único.

- Entendo. - Gordon disse enquanto Beggar se sentava ofendido.

- Você basicamente já conseguiu as suas duas maiores armas nessa jornada, medo e coragem vão te levar longe. Agora, acho que egoísmo vai ser uma coisa útil na hora de balancear quando usar o medo e quando usar a coragem, entende? Eu sei muito bem dos nossos defeitos, falar demais, sem pensar, apaixonadamente demais. Nessas horas, você terá de aprender a se refrear e usar o medo pra fazer uma barricada sentimental na sua verborragia. E quando você estiver inseguro, em dúvida, sem esperanças, terá de usar a coragem como combustível pra seguir em frente. Como eu disse, o único que pode te impedir de conquistar o que quer que seja, é você mesmo. Seja por ser audacioso ou por ser medroso demais. Ser egoísta na medida certa vai te ajudar a medir as consequências dos seus atos, e principalmente, das suas palavras.

- Nós falamos demais, saquei. - Gordon dissem em tom entediado.

- Sim falamos. - Everton repetiu severo. - Você principalmente Convicto! Meu conselho extra-oficial é, aprenda a manter a maldita boca fechada seu imbecil!

Desespero riu baixo e Beggar fez um olhar reprovador, Gordon gargalhou alto.

- Esse foi o melhor conselho que me deram até agora sabe? Mas a merda está feita, palavras são como flechas meu bom irmão, temos que nos focar em resolver o problema atual.

Continuaram a conversa de maneira mais informal a partir dali, Beggar ficou impressionado, jamais vira os gêmeos conversando de maneira tão civilizada antes. Atacaram-se muito pouco até que começaram a ouvir aves marinhas, estavam perto da terra.

Desceram do barco num porto gelado de uma cidadezinha costeira, as montanhas ao redor estavam cobertas de gelo, eles rumaram diretamente pra elas pra encontrarem o próximo personagem da jornada. Gordon estava tendo um sentimento estranho no estômago, a partir dali, daquela conversa com o homem que mais odiava em todo mundo, ele mesmo, pegou-se pensando que tudo estava agora sobre uma balança e que cada ação ia empurra-la numa direção ou em outra. Sanidade e insanidade eram uma questão de saber controlar-se da maneira apropriada agora.


A SEGUIR: O Inferno de Gordon, parte V: Nanook, the Dark Hunter of Lust.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O Inferno de Gordon, parte III: Slayer, Plebeu-Medo.

Londres era só neblina e garoa fina naquela manhã. Na entrada da cidade estavam estacadas 3 figuras imponentes. Um jovem alto e gordo de olhar feroz, Gordon. Um velho careca de ar cansado e sábio, Beggar. Um imenso urso pardo de olhos muito negros e vazios, Desespero. Ao redor deles um enxame de luzes azuis circulava alegremente, fadinhas de 2cm de altura e asinhas de formiga.

- E então? - Gordon perguntou pra ninguém em particular.

- A cidade parece deserta. - Beggar disse sombrio.

- Obra do tal assassino que vive aqui?

- Slayer não é um mero assassino. - Desespero cortou o diálogo com sua voz grave e cruel. - Ele representa o próprio medo e mais ainda.

- A besta tem razão Gordon. O mal que habita esse esqueleto de metal e concreto é absolutamente vil. - O monge-mendigo fez uma pausa dramática. - É uma pena, mas acho que você deve enfrentar esse desafio sozinho.

- Sozinho? - Era Desespero quem parecia mais surpreso.

- Sabedoria não chega a ser útil contra o puro medo e eu temo que sua influência vá aumentar o poder de Slayer urso.

- Sagaz. - Riu Gordon. - Levo as fadinhas comigo, inspiração pode ser útil. Deem a volta e me encontrem na saída da cidade, eu vou o mais rápido que puder.

Separaram-se, o urso e o monge por um lado e Gordon, rodeado pela mística nuvem azul de fadinhas alegres, entrou pela rua Londres adentro.

O vento corria por entre os prédios rápido e deixava tudo gelado e duro. Gordon juntou os braços contra o peito e soprou uma baforada quente contra as mãos. O enxame pareceu ficar ligeiramente mais lento, mas as fadinhas ainda riam alto e davam gritinhos animados a cada esquina.

O jovem andou pelas ruas da cidade que jamais conhecera realmente, todos os pontos turísticos pareciam suspeitamente próximos uns dos outros, o Big Ben, o Palácio de Buckingham e aquela roda-gigante imensa que ele nunca realmente se importou de saber o nome. Logo ele encontrou algo que chamou sua atenção, a placa na rua indicava que ele estava na Rua Mothway. Seguiu por essa nova via até a esquina com a 6ª rua, viu um Pub classicamente bretão.

- Achei que esse bar ficasse na América. - Disse pras fadinhas. Elas riram alto e dardejaram ao redor da porta semi-aberta. Gordon entrou com cautela e viu alguém sentado ao balcão.

Era um homem pequeno, mirrado, sua aparência era fraca e débil, tinha a cabeça calva, mas de cabelos ainda castanhos, seus olhos eram negros e ordinários, mas cheios de um ódio e revolta como Gordon jamais vira em quaisquer par de olhos que não os seus próprios. Ele estava debruçado sobre o balcão e segurava uma longa faca de aço na mão direita.

- Olá Convicto. - Disse com uma vozinha fraca.

- Slayer. - Gordon cumprimentou de volta. - Imagino que saiba de tudo. O fim, a loucura e tudo o mais.

- Ouvi dizer, mas não quis verificar. Tive medo que fosse verdade.

- É verdade. - As fadinhas explodiram em gargalhadas agudas.

Slayer estremeceu.

- A serpente emplumada surge no horizonte, sou apenas um servo.

- O que você disse? Que serpente? Do que está falando?

- Do que você tem medo Convicto? Do que você tem medo Gordon? Ou seria Everton?

Gordon fechou a cara imediatamente.

Slayer riu baixinho, mas logo parou.

- Eu sei do que você tem medo jovem.

- Vá direto ao ponto! - Gordon ergueu a voz, Slayer se encolheu contra o balcão, depois virou pra encarar o rapaz pela primeira vez, a faca em sua mão gotejava sangue fresco.

- Sua jornada rumo ao encontro iminente consigo mesmo não é motivada pelo medo de enlouquecer Gordon. - Slayer pela primeira vez tinha uma voz firme e parecia não tremer ou sentir medo de nada. Estava consciente, sóbrio. - O que você mais teme é que tudo o que você está enfrantando seja por nada. Seu medo é que a culpa de tudo isso seja sua, só uma carência boba que você precisa suprir, não importando bem como. Custe o que custar, doa em quem doer. Seu medo é se dar conta de que você vai pisar em qualquer um em seu caminho pra conseguir o que você pensa que quer.

O jovem ficou em silêncio e sentindo sua seriedade as fadinhas pousaram em seus ombros e coçaram os queixinhos carrancudas. Gordon pesou aquelas palavras e sentiu o gosto amargo daquela sabedoria profana. Respirou fundo.

- Meu medo tem algum fundamento?

- O medo sempre tem fundamento, mas nem sempre ele é real. As pessoas temem animais que não podem feri-las pela mera lembrança das doenças que eles podem transmitir. Você teme a solidão, mas acima de tudo, você teme o que está disposto a fazer pra não se sentir só. O Cavaleiro lhe deixou uma herança cruel.

- O que eu faço pra não sentir medo?

Slayer gargalhou alto assustando Gordon e as fadinhas, elas gritaram e saíram voando pelas janelas deixando-os a sós.

- Não se pode simplesmente "não sentir medo". O medo faz parte de você, ele te impõe limites. O melhor que você pode fazer é aprender com o seu medo e tentar doma-lo. Resista aos seus impulsos infantis, lute contra aquela vontade de dizer tudo o que pensa! Coragem te dá asas pra ser um herói, o Medo te dá a disciplina pra isso!

Um silêncio pesado tomou conta do Pub, os dois apenas se encaravam, então Slayer desviou os olhos e seu transe terminou, virou-se e voltou a gaguejar e tremer.

- Agora vá Convicto, você ainda tem um longo caminho. - Disse com a voz fraca.

- Quem é o próximo?

- Vá até o porto, lá um barco os espera. As fadas já foram buscar Beggar e Desespero. Navegue pro Norte, ele vai achar você.

- Ele quem?

- Seu pior inimigo.


A SEGUIR: O Inferno de Gordon, parte IV: Everton, pois seu pior inimigo é sempre você.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Satanás montado numa Gaita de Foles

Ele caminhou confuso pelo corredor escuro, seguia aquele barulho macabro, metade música, metade animal no matadouro. Não tinha a menor idéia do que fosse. Os corredores eram estreitos e tinham farpas afiadas de metal nas paredes, parecia um labirinto cruel e infinito. Até que ele achou a fonte da barulheira.

Num salão oval, iluminado por archotes, estava um homem gordo vestindo um colant vermelho ridiculamente agarrado às suas carnes moles.Na cabeça usava uma tiara com dois pequenos chifres vermelhos, de sua fantasia saia uma cauda flácida de tecido. Estava sentado sobre uma massa disforme de panos grossos e hastes de madeira.

- Quem é você? - Perguntou o rapaz.

- Mas ora, quem? Eu sou Satanás cavalgando uma gaita de foles!

Silêncio.

- Onde eu estou?

- Nos labirintos tortuosos de sua própria desesperança. Também chamam de Loucura esse lugar. Fácil de entrar, difícil de sair.

- Quer dizer que enlouqueci?

- Sim e não. - O diabo gordo riu. - Se você veio até aqui, Loucura é um lugar que você conhece, ou seja, você pode estar se mudando pra cá sem volta, mas duvido que você já tenha enlouquecido. Afinal, estamos conversando civilizadamente não estamos?

Satanás acendeu um cachimbo e dele começou a sair fumaça azul-celeste.

- Você não é o demônio de verdade. - Disse o jovem desconfiado.

- Talvez não, mas sou algo pior, sou o demônio que mora na sua cabeça.

Ao longe ouviram um grito de homem, terrível e desesperado.

- Está pra começar. - Disse o gordo.

- Onde eu assino? - Perguntou o jovem com olhar divertido.

Os dois gargalharam e pelo labirinto centenas de criaturas rastejaram ao mesmo tempo, sombrias, cruéis e misteriosas.


Gordon "Troll" Banks
 
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