sábado, 26 de dezembro de 2009

Café antes do Apocalipse

Ele estava entrando na casa dos trinta, vestia uma calça jeans simples e uma camiseta branca, tinha cabelos castanhos e ordinários, olhos azuis muito alegres e um sorriso radiante no rosto. Seu nome era MORTE. Caminhava empolgado rua abaixo naquele dia maravilhoso de sol quente. Ele foi até um pequeno restaurante aconchegante e se enfiou num box pra seis pessoas. Pediu uma fatia de torta de banana com calda quente à garçonete. Ficou sentado no box cantarolando alegremente.

Mais tarde, na mesma rua, surgiu um segundo homem. Ele aparentava ter uns quarenta anos, os cabelos nas laterais da cabeça começando a ficar grisalhos. Sua postura era perfeita, tão reta quanto a de qualquer pessoa viva poderia ser. Trajava um terno preto com gravata preta e não olhava para os lados enquanto marchava até o pequeno restaurante. Seu nome era GUERRA. Entrou no estabelecimento e sentou-se no mesmo banco ocupado pelo rapaz que comia torta preguiçosamente. Pediu café e acendeu um cigarro, ignorando o cartaz que dizia que era proibido fumar ali.

Agora subindo a rua, vindo da parte pobre da cidade, vinha um rapaz de no máximo dezessete anos. Vestia uma calça jeans escandalosamente agarrada às coxas magras e uma jaqueta de couro sobre uma camiseta deprimente de um palhaço se enforcando. Tinha muitos piercings nas orelhas e no rosto, seu cabelo era encebado e rebelde, indo pra todas as direções. Ele tinha passos vacilantes, parecia entorpecido. Seu nome era PESTE. Ele entrou no restaurante trocando pernas e se sentou no mesmo banco dos outros dois homens. Pediu à garçonete um pastel de frango e roubou muitas folhas de seda de cima da mesa.

Lá fora do restaurante, o dia quente e alegre começou a se transformar. O sol se escondeu atrás de grossas nuvens cor de chumbo e começou a ventar muito forte. Grossas e gordurosas gotas de chuva suja começaram a cair do céu.

Subindo a rua na direção do restaurante vinha um quarto homem. Era imenso, muito gordo e quase da altura de um homem e meio. Se arrastava rua acima vestindo uma calça marrom muito feia, manchada de vômito, uma jaqueta poída e uma camisa encardida e gasta. Na cabeça tinha um chapéu marrom igualmente miserável. Seu nome era FOME. Entrou no restaurante e finalmente ficou claro porque os outros três homens estavam sentados todos do mesmo lado do box. Fome precisou de um lado inteiro do box somente para si e seu corpo descomunal. Sentou-se de frente pros outros e tirou o chapéu com humildade.

Morte olhou pra todos e sorriu efusivo, deu mais uma garfada na torta, depois falou de boca cheia:

- Bom ver todos você companheiros, fazia tanto tempo! - Ao contrário do que se poderia esperar, Morte, o mais temido Cavaleiro do Apocalipse, era muito amistoso e gentil. Falava o tempo todo num tom agradável e parecia sempre muito feliz.

- Fizeram falta, vocês não vão acreditar no que eu andei fazendo nos últimos milhares de anos! - Peste tinha um olhar distante e vidrado, estava claramente drogado ha algum tempo e seu corpo já não tinha mais capacidade de parecer o de uma pessoa saudável, sua pele era amarela e manchada e seus dentes eram escuros.

- Vamos aos negócios Senhores. - Disse Guerra muito rude. Sua voz era firme e não desafinava uma única nota. Além de severo e autoritátio, arrogância também era uma de suas marcas principais.

Fome não deu sinais de que diria nada, Guerra prosseguiu:

- O fim está próximo Senhores! - Ele deu um tapinha firme no tampo da mesa e começou a falar num tom de discurso ensaiado. - É nossa missão dar cabo de tudo que nos foi encumbido! Como vocês devem bem saber, graças a esse avanço dos mortais chamado tecnologia, a guerra e a discórdia estão por toda parte! Homens estão se atacando e matando uns aos outros ao redor de todo o mundo meus amigos! Que alegria! Eu vou repousar sempre com a sensação de que minha parte da missão está sendo cumprida! Vivas!

Morte bateu palmas e soltou um gritinho animado, sorria . Guerra sorriu pressuroso e sentiu-se admirado pelos companheiros. Morte tomou a palavra:

- Muito bem companheiro Guerra, muito bem! - Ele deu um gole num refrigerante cáustico em seu copo. - Bom, pra dizer a verdade, eu não posso reclamar de muita coisa da minha parte. O trabalho de todos vocês é excelente e sempre me rendem muitos espólios. Os mortais estão morrendo aos milhares o tempo todo!

Guerra deu mais um sorrisinho vitorioso, mas Peste interrompeu:

- Mais velhos, mais sábios e mais experientes que eu vocês podem ser meus compadres Cavaleiros, mas eu me recuso a ser rebaixado aqui. Se você não perceberam, meu trabalho vai indo muitíssimo bem! O homem espalha por aí substâncias viciantes, eles se destroem aos poucos e essa epidemia de morte lenta ainda ajuda a distruibuir muitas das minhas obras-primas pelo mundo. Câncer, Hepatite, AIDS, o mundo não sabe como se livrar da minha arte!

Guerra ficou claramente se sentindo contrariado, mas Morte gargalhou gostosamente e aplaudia o jovem companheiro com entusiasmo. Morte falou:

- E você meu bom amigo Fome, que nos conta de suas façanhas? O Fim vem chegando e temos que ter certeza de que tudo está correndo bem.

Fome levantou a cabeçorra e encarou os amigos ali sentados, seus olhos eram tristes e ele suspirou alto, torcendo seu chapéu nas mãos antes de falar:

- Vejam bem. - Começou. E sua voz era tão grave e triste que os outros três Cavaleiros quase que imediatamente começaram a chorar, soluçavam em silêncio, constrangidos. - O mundo é um lugar imenso e o glorioso trabalho dos Cavaleiros do Apocalipse está sendo notado por toda a parte. Concordo com o irmão Guerra e o irmão Peste, que estão mostrando admirável trabalho, e admito que o irmão Morte, mesmo colhendo os frutos do trabalho alheio também tem seu valor. - Morte deu um sorrisinho amarelo e sem jeito. - Mas eu vim aqui hoje pra clamar meu lugar de direito como o líder dos Cavaleiros.

Os três Cavaleiros se entreolharam incrédulos.

- Você pode até fazer um bom trabalho na África companheiro Fome, mas eu não consigo ver muito mais do seu trabalho em qualquer outra parte do mundo. - Disse Guerra.

Fome não sorriu, na verdade seu rosto ficou com uma expressão ainda mais triste e os três Cavaleiros se puseram a chorar novamente:

- Muito se engana, irmão Guerra, se você pensa que tudo o que eu posso fazer é retirar a comida da boca dos homens. A fome é uma metáfora que você deve ter falhado perceber. Chamam-me Fome por causa do vazio que causo e esse talvez fosse um nome muito mais apropriado a mim, Vazio. Minha influência vai tão além do alimento físico que você talvez não faça idéia, mas eu posso tentar explicar. A miséria, a falta de esperança, o medo, o ódio, a falta de amor, a solidão, a depressão, o desespero, a apatia, são todas minhas ações. São todos resultados do poder do Vazio na mente e no espírito dos homens. Hoje as pessoas se afastam umas das outras cada vez mais através da tecnologia, se acomodam em vidas que não são felizes, mas não são tampouco infelizes, e isso as satisfaz. As pessoas se envolvem em relacionamentos vazios e sem significados, com medo da dor de perder um amor, e isso só fortalece a falta de esperança, a solidão e tristeza no mundo.

Guerra estava lívido, Peste parecia confuso e Morte sorria com lágrimas nos olhos:

- Prossiga irmão.

Fome suspirou e falou mais:

- Enquanto houver no mundo a dúvida, a falta de coragem, a falta de insistência, o medo de tentar. Eu, o Vazio, vou me alimentar dessas coisas e meu poder só vai crescer. O espírito dos homens está quase morto. A vida miserável que levam é o bastante pra eles. Sem sucesso real, sem alegria real, sem amor real. Morre a poesia e o romantismo e florescem o cinismo e o medo. Medo da morte, medo da guerra, medo da peste, medo da dor, medo do amor, medo da solidão, medo de tudo, medo do VAZIO. Os homens temem a vida hoje mais que qualquer coisa meus irmãos, eles temem o que querem e o que poderiam alcançar se realmente tivessem coragem pra tanto, isso é a minha força!

Morte não resistiu e se levantou aplaudindo, lágrimas escorrendo pelo seu rosto:

- A coroa é sua irmão, você me convenceu! - Do indicador da mão direita, Morte puxou um anel pálido e o entregou para Fome. Assim que o anel foi colocado em seu dedo, Fome se levantou e saiu do restaurante. O dia aos poucos clareou e parou de chover, o sol se arriscou iluminar novamente a rua.

Guerra se levantou irritado na sequência e saiu empurrando Peste pra fora do estabelecimento, Morte ficou pra trás e pediu uma outra fatia de torta de banana com calda quente.

- Cavaleiro do Vazio...soa estranho...Cavaleiro do Medo? - Conversava sozinho. - De qualquer forma, ninguém vai reescrever o livro, vão sempre conhece-lo como Fome, sem saber o que realmente aquela palavra significa...

3 comentários:

Doug disse...

Isso me lembra Gaiman. E isso é um PUTA elogio.

Unknown disse...

foi a primeira vez que vi a verdadeira definição de fome,belo conto

Unknown disse...

foi a primeira vez que vi a verdadeira definição de fome,belo conto

 
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