Sexta-feira era um bom dia pra mendigar, as pessoas bebiam e se sentiam generosas. Claro que pedir dinheiro era uma estratégia fraca e sem elegância. Jack preferia o bom e velho "violão e chapéu". Ele estava de volta à cidade depois de alguns anos fora, um pouco mais velho, um pouco mais magro e muito mais sábio.
Andava pelas ruas usando um jeans frouxo e uma camisa sem botões que ficava aberta o tempo todo, expondo imensas tatuagens negras no peito e no abdomem de Jack, fumava cigarros sem marca, dados de boa ou má vontade pelos transeuntes e usava um chapéu surradíssimo na cabeça. Ainda estava descalço.
Ele subiu a rua com o violão nas costas, parou num bar sujo e pediu duas doses, bebeu a primeira sem fazer careta e jogou a segunda no chão. Sentou-se numa mesa e bebeu algumas cervejas sozinho. Aí, tão rápido quanto se sentou, levantou-se pagou e saiu cambaleando rua acima.
No alto da rua estavam os bares mais caros, limpos e bem frequentados. Na calçada deles, numa mesinha frágil de madeira, dois casais confraternizavam com variados graus de empolgação. Um dos homens estava bem bêbado e falava molemente sobre baseball profissional. O outro tinha um olhar severo, mas inflamado de álcool, discutia firmemente com o colega. As mulheres conversavam discretamente, uma moça rechonchuda com uma imensa peruca ruiva e uma mocinha mirrada, quase invisível atrás de uma jarra de cerveja.
Jack subia a rua e suava, isso o deixava com um cheiro desagradável de gente bêbada e suja, mas tirava a neblina alcoólica de seus olhos. Ele parou bem em tempo de ver os dois casais na mesa do barzinho, tentou atravessar a rua, mas um fluxo contínuo de carros o impediu. Ele continou andando de cabeça baixa, talvez a barba e as tatuagens, o violão, o chapéu e os pés descalços o escondessem.
A gorda ruiva soltou uma exclamação de espanto que sobressaltou a mocinha, as duas olharam ao mesmo tempo pro mendigo algo e magro que subia a rua.
- Jack? - A mocinha soltou num sussuro inaudível.
- JACK? - O bêbado urrou. - Onde? Ora, mas vejam só! - Ele se levantou cambaleando o corpo deformado e agarrou Jack pelos ombros. - É você mesmo cara? Não acredito!
A ruiva soltou um gritinho e olhou urgente pra mocinha, ela estava pálida e tremia um pouco, depois olhando para o rapaz de olhos severos, ela percebeu que o rosto dele estava roxo e seus lábios virados pra dentro da boca em fúria, os olhos injetados de algo entre indignação e puro medo.
- Hey. - Jack saudou todos na mesa visivelmente incomodado. - Muito tempo. - Seus olhos se demoraram uma fração de segundo a mais na mocinha magra. Olhos severos percebeu, se levantou.
- De saída? Que pena, nós nos vemos na próxima então.
- De saída? - Repetiu o bêbado. - Bobagem! Ele obviamente não está indo pra lugar nenhum, sente aqui conosco Jack! - O homem nem esperou resposta, puxou Jack pela camisa e o sentou numa cadeira colocada com habilidade na cabeceira da mesa. - Vamos tomar umas! Pelos velhos tempos!
A Ruiva olhava tudo com ar de espanto, a Moça magra tinha terror puro no rosto, Olhos Severos era só ódio e o Bêbado tinha talvez a expressão mais sincera da mesa, uma cara meio nublada pelo álcool, mas feliz.
O garçom trouxe renovadas jarras de cerveja para todos, mesmo sob os protestos de Jack que clamava não ter dinheiro (Tudo bem, eu te cubro, dizia o Bêbado.), eles ergueram as 5 jarras no ar:
- À amizade! - Urrou o Bêbado, um pouco mais alto do que o necessário.
- Aos velhos tempos. - Disse a Ruiva sem jeito.
- Aos leões do mundo, com fome o bastante para abocanharem o que querem! - Disse Olhos Severos.
- Ao amor. - Disse a Moça num tom que ela pretendia ser de desafio, mas soou como arrependimento.
- À iluminação. - Disse Jack.
Beberam goladas homéricas depois do brinde. A Moça ficou imediatamente com as bochechas vermelhas e seus olhos ficaram um pouco nublados.
O Bêbado logo começou a bombardear Jack com perguntas sobre os últimos anos, onde ele tinha estado, o que tinha feito, o que fazia agora, o que pretendia fazer, o que significavam suas tatuagens, onde aprendera a tocar violão. O monge-mendigo respondia tudo no melho dos humores, falava alegremente sobre seus anos de monastério e todos os lugares que visitara ao redor do mundo. A Ruiva e a Moça tinham olhares visivelmente admirados e mais de uma vez o Bêbado fez graça da Ruiva olhando pra dentro da camisa de Jack para ver melhor as imensas tatuagens. Olhos Severos no entanto não parecia nem um pouco contente com o reencontro e encarava Jack o tempo todo, fazia cara de desagrado quando ouvia sobre os lugares exóticos que ele visitou e fazia comentários maldosos sobre os anos dele no monastério.
A uma certa altura o Bêbado cochilou com a cabeça sobre os braços e um silêncio mortal se abateu sobre a mesa, os quatro eram pura tensão. A Ruiva educadamente fez algumas perguntas pra Jack que as respondeu como pode. Mas, mais uma vez, silêncio. Eles se encaravam e bebericavam suas jarras de cerveja como se alguém fosse puxar uma arma a qualquer minuto e começar a atirar. Olhos Severos fez as honras.
- Então Jack. Ouvi dizer que você se mandou quando seu namorado morreu. Aquele gordo, Bernie ou Chuck.
- Charlie. - Disse a Moça com sua voz mínima.
- Que seja. É verdade? - Olhos Severos abraçou os ombros magros da Moça com suas mãos duras, até mesmo seus dedos pareciam ser recheados de ódio e coisas ruins.
- Na verdade. - Jack sorriu. - A morte de Charlie foi só uma parte da equação. A Bia aqui ter me dado o fora e ter me trocado por um lutador babaca como você foi o que completou o cálculo.
A Ruiva soltou um gritinho e sua peruca entortou na cabeça, o Bêbado continuava cochilando, Bia, a Moça magrinha e quase invisível, ficou pálida e seus imensos olhos castanhos se encheram de lágrimas. Olhos Severos parecia que ia matar Jack só com o olhar, seu rosto estava completamente vermelho e ele se levantou de súbito, derrubando sua jarra de cerveja sobre a própria calça. Bia pateticamente começou a limpar a calça com guardanapos.
- Como é que você se atreve? - Ele silvou e perdigotos saltavam como flechas envenenadas.
- Relaxa aí cara, como é que é seu nome mesmo? Ah, não importa. - Jack se levantou sorrindo e virou sua jarra de cerveja até o final. - Pode parecer que não, mas você e a Bia são meu casal preferido no mundo todo.
A Ruiva olhava agora pra Jack aterrorizada, ela tremia e tentava acordar o Bêbado.
Bia fitou Jack e por um momento ele se lembrou de tudo que um dia ele já havia dito pra ela, tudo que tinha feito por ela, sua devoção cega por ela, das tardes frias sobre um cobertor vendo um filme qualquer, aqueles lindos olhos castanhos, tão cheios de mentiras, tão cheios de coisas fúteis e vazias, tão cheios de coisas que Jack nunca ia aceitar que estavam lá.
- Falo sério. - Jack continuou. - São meu casal preferido no mundo todo pela simples razão que de uma tacada só eu consegui remover duas pessoas horríveis da minha vida. Vocês me livraram de dor e sofrimento pelos quais eu nunca mereci passar. E o melhor de tudo, vendo vocês dois aqui, bebendo cerveja com o casal maravilha aqui ao lado. - Ele fez um gesto com o dedão apontando a Ruiva e o Bêbado. - Só me mostra o quanto vocês são vazios e...felizes. Eu sou muito grato por isso, por saber que onde quer que eu esteja, mesmo pobre e sem sapatos, eu ainda sou uma pessoa melhor do que qualquer um de vocês dois jamais serão. A única pessoa levemente digna nessa mesa é o Bêbado, porque ao menos ele é sincero e engraçado.
Um silêncio sólido caiu sobre os quatro, o Bêbado roncou sonoramente.
Jack sorriu mais uma vez, aquele sorriso simples e cheio de significados complexos que ele aprendera no monastério. Pegou seu violão e dedilhou uma canção conhecida, da época em que eles todos estavam no colégio, a canção de Jack e Bia. Quando terminou ele lançou o violão de volta pro ombro e tirou seu chapéu, quase em camera lenta ele o estendeu até Olhos Severos.
- Um trocado? Pra comprar uma dose sabe? Noites frias.
Olhos Severos poderia ter explodido em chamas ali naquele exato instante e teria sido compreensível. Ele enfiou com raiva a mão no bolso e sacou a carteira, jogou uma nota de 50 no chapéu.
- Muito agradecido. - Jack disse simples e deixou a mesa caminhando novamente pra calçada e então rua acima, cambaleava um pouco, seus pés descalços não faziam barulho na calçada.
Na mesa, ainda silêncio, então Bia saiu correndo atrás de Jack.
- Jack espera! - Ela o alcançou e o segurou pelo pescoço puxando sua cabeça.
- Hey! Hey! Pare com isso Bia, você é uma moça casada. - Jack disse mau-humorado. - Você ainda tem aquilo que te dei na noite da formatura?
- Sim! Ainda tenho, está guardado em meu quarto, nunca consegui me desfazer daquilo.
- E é por isso que nós não vamos ficar juntos. Você esteve em dúvida quanto a ele esses anos todos, guardando meu presente numa caixa como se eu fosse alguma espécia de saída de emergência. - Jack a fitou com profundidade. - Espero que você não jogue fora, aquilo é tudo que vai ter de mim pro resto da sua vida.
Bia chorou em silêncio, seus olhos inflamados de álcool e angústia. Olhos Severos os alcançou e a abraçou pelos ombros.
- Saia daqui Jack, você já fez estrago o bastante por uma noite.
Jack se virou e caminhou rua acima, com o violão jogado nos ombros, a camisa aberta, o chapéu surrado e os pés descalços.
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Um comentário:
Um dos melhores que já li
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