domingo, 20 de janeiro de 2008

Jack, Charlie, e o grande baile

(Bom, primeiramente, peço desculpa por quebrar completamente o ritmo do blog no último post, mas eu realmente precisava desabafar e foi o melhor jeito que eu encontrei na hora. O blog continua com os contos e crônicas usuais, que é o que eu gosto mais de escrever e aparentemente é o que tem agradado mais o pessoal.)


Era a grande noite. A grande chance pra todos. A noite em que nobres e plebeus eram iguais. A noite do baile do colegial.

Eu não estava particularmente empolgado, era só mais uma festa com o pessoal manjado da escola, só que sem álcool e com a supervisão de adultos. Resumindo, era um festa chata, mas por algum motivo, existia toda uma mística em torno daquela noite que fazia parecer que tudo poderia acontecer. Eu conhecia mais de uma pessoa que esperava pelo baile antes mesmo de saber exatamente o que era um baile.
Os caras da turma estavam entusiasmados. Charlie tinha comprado um terno novo e Kevin tinha convencido Heather, a garota mais gostosa da escola, a ir com ele. Tudo prometia uma noite inesquecível. De fato, eu jamais esqueci.

O baile já ia chegando ao final, o ponche já estava batizado, mas ninguém se mostrava bêbado demais. Os primeiros casais saíam discretamente e entravam nos carros procurando pelos melhores cantos escuros da cidade pra dar uns amassos. Kevin dançava uma baladinha lenta no meio da pista com Heather, e Bia, a garota que eu tinha levado ao baile, estava num canto agarrada com um jogador do time de luta-livre que eu não reconheci, por que eram todos muito parecidos.

Eu sai do salão e dei uma caminhada até o pátio, vi que o céu estava muito claro e estrelado, e a lua estava ligeiramente avermelhada, um daqueles lances de eclipse ou sei lá o que.
Quando me virei na direção da torre do relógio, vi um vulto grandalhão lá no alto, não tive dúvidas, era Charlie.

- Vai entrar numa enrascada se alguém te pegar aqui. - Eu disse me aproximando depois de finalmente subir a longa escada espiral por dentro da torre.

- Não me importo. - Charlie disse virando pra me olhar, ele estava sentado no parapeito com as pernas para fora da torre e cambaleou perigosamente, na mão esquerda um embrulho em papel pardo.

- Isso na sua mão é scotch? Você andou bebendo? - Perguntei com um semi-sorriso no rosto, Charlie raramente bebia, mas costumava exagerar quando o fazia.

- Eu só bebo bourbon Jack, achei que você já soubesse. - Ele respondeu me dando as costas.

Reparei que sobre o parapeito estavam os sapatos dele, e dentro de um dos sapatos vi o brilho dourado do relógio que ele ganhara do pai e dos óculos de grau, era estranho vê-lo sem os óculos, mas me pareceu um detalhe sem importância.

- A bia me largou no meio da segunda música. - Desabafei.

- Heather ainda vale alguma coisa, mas a Bia é uma tapada. - Ele disse com mais dureza do que eu esperava ouvir. - Não se preocupe, o karma toma conta dela.

Charlie era um cara muito alto e de ombros largos, ainda assim um sujeito simpático e de aparência inofensiva. Era um nerd de marca maior. Devorava livros no café da manhã, adorava filosofia, estudava tudo que podia sobre religião, embora não mostrasse seguir nada do que lia. Não pude deixar de sorrir quando ele deixou Bia a cargo do karma, era exatamente o estilo dele, por isso era meu amigo. Meu melhor amigo.

- Vamos embora daqui, esse baile já era. - Eu disse na esperança de voltar pra casa e descansar na minha cama.

- Pode ir sozinho, vou ficar aqui mais um pouco.

- Certo. Se cuida Charlie, te vejo amanhã.

Eu desci as escadas e deixei o Charlie lá. No estacionamento, vi Kevin e Heather saindo no carro dele, a noite deles ainda estava começando. A minha no entanto estava a 10 segundos de terminar.


BOOM!!

Me virei na direção do barulho assustado, parecia uma bomba, mas não tinha fogo. De repente escutei um grito de mulher e um alvoroço logo depois, estavam na torre do relógio. Corri de volta e logo percebi que algo estava errado.

Cercado por uma 4 pessoas completamente aturdidas, estava um corpo no chão, um corpo grandalhão, sem óculos e sem sapatos, e sem vida. Charlie tinha caído da torre.

A noite parecia não terminar nunca enquanto os policiais me faziam mais e mais perguntas, já que eu tinha sido o último a vê-lo com vida.
Um dos peritos encontrou um bilhete no bolso interno paletó:

A tout le monde
A tous mes amis
Je vous aime
Je dois partir

These are the last words
I'll ever speak
And they'll set me free

Charlie.

Era a letra de "A Tout Le Monde" do Megadeath. Estava escrito com a letra do Charlie e foi considerado um óbvio bilhete de suicídio. Charlie se suicidou. Eu nunca soube o porque. Ele era meu melhor amigo, devia estar gritando por ajuda há semanas com aquele jeitão retraído dele e eu nem percebi, concentrado demais no meu mundinho precioso de festas e garotas.

Dias depois a mãe de Charlie me ligou e disse que eu podia ir até a casa dela e pegar alguma coisa do Charlie como lembrança. Eu entrei no quarto dele, e vasculhei por algum diário, alguma pista do motivo pra ele ter feito aquilo, até liguei o computador e verifiquei o que ele andava fazendo na internet, mas tudo que eu via eram sites sobre retiros budistas, monastérios e coisas relacionadas ao budismo. Em cima da escrivaninha estava a única coisa que eu tirei daquele quarto. Um folheto falando sobre um retiro budista no japão.

Em um ano eu consegui a grana e logo estava de viagem marcada. Não ia pra faculdade, estava de malas prontas pra ir pro japão.

8 comentários:

Nilton Flash disse...

Gosto do seu estilo de narração escrita, cria suspense ... a gente acha já sabe o que vai acontecer , mas não tem certeza tem que ler até o final e não é difícil pois o texto é muito bom
Parabens gostei muito e etarei lendo suas outras postagens
abraço

Anônimo disse...

Oi!
Andei fuçando seu blog!!
^^

Amei tudo! A forma que você usa as palavras( com uma pureza...), a forma como vc narra as histporias...muito bacana mesmo!!!

Bjux...

Lucas disse...

Eu achei esse texto realmente muito interessante, o interpretando de uma forma muito pesssoal - interpretações são sempre pessoais, mas essa é muito pessoal - demonstra a incapacidade de ajudar o outro, a falta de possibilidade em ajudar o outro. Eu tenho a impressão que quanto mais velhos ficamos, mais ficamos quietos em situações difíceis. Bom, no texto eles são só adolescentes.... Enfim, essa é a minha interpretação muito pessoal ou, pelo menos, essa é a idéia que despertou em mim lendo o esse texto.

Por que o cenário americano? Lembrou um high school film (pelo menos até o suicídio, muito profundo e muito peculiar pra esses filmes).

Abraços,
Lucas

http://almabebada.blogspot.com

Anônimo disse...

Gostei de seu texto, me pareceu com palavras simples colocadas com sutileza que fica maravilhoso!

Lucas disse...

Vou ler sim, com certeza.... Só não leio agora porque estou chapado de sono. Tô linkando seu blog lá no meu.

Me adiciona aí no msn: lucbarros66@hotmail.com

Você gosta de bukowski! Bom! o nome do meu blog é alma bêbada exatamente por causa do bukowski.

Abraços.

Carlos Vin disse...

Cara, gostei de como vc desenvolveu a estória...
Criou o clima necessário, ficou bem bacana...
Eu só não gosto do cenário e da realidade norte americana
Mas o tema em si, foi mto bem exposto...

Um abraço, cara!

Rafael Puime disse...

Muitas vezes eu mesmo não me aqueço desse jeito. Mas foi uma tentativa pra ajudar uma amiga minha... De qualquer forma valeu pelo comentario! Seu blog ta muito bom, textos muito bens escritos!

Abraçao!

O VIADO E A TRANSGRESSÃO POÉTICA disse...

Ele foi coerente, não? Muito coerente o Charles... pena que há tão poucos Charles e tantos e tantas a julgá-lo. Me admira que nenhum comentário aqui veio carregado do discurso bobo, burguês e moralista contra o suicídio.
Belo texto!
Ricardo
(aguieiras2002@yahoo.com.br)

 
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