segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Eu e os 10 Budas Cotidianos

Eu tinha trabalhado a noite toda, só tinha aquele dia de folga, trabalharia no dia seguinte, que era domingo por sinal...só havia dormido uma hora quando minha mãe bateu na janela.

-Tom, você tem certeza que não vai? Você tá dormindo? - Engraçada a ordem das perguntas.
-Não vou. Se estivesse de folga amanhã, até iria, mas quero descansar.
-Seu irmão volta ainda hoje, volte com ele!

Ela tentava me convencer a ir num churrasco de aniversário de casamento da minha tia, vamos chama-la de "A". Tia A me adorava e sempre me convidava pra ir até a casa dela, que era obscenamente longe de São Paulo, duas horas e meia de viagem. Eu não queria ir como deu pra perceber, mas minha mãe tinha enfiado na cabeça que eu devia ir, e não parecia disposta a desistir.

Acabei cedendo, me levantei, me troquei e sai de carro rumo a casa de tia A com meu irmão, meus pais iriam mais tarde levando uns primos meus de carona.

Fiquei em silêncio como de costume, nunca fui de falar muito, não acho necessário. As pessoas por outro lado tomam meu silêncio por timidez, arrogância ou burrice. Meu irmão tentou puxar papo algumas vezes, mas desistiu quando reparou que minhas respostas não passariam de monossílabos sussurrados. Seguimos viagem tranquilamente, com comentários esporádicos dele sobre algo que víamos na rua ou na estrada e um comentário meu, que normalmente encerrava o assunto.

1º Buda Cotidiano: O sujeito com chapéu de oncinha

O Trânsito em São Paulo é um saco, não importa o dia, e aquele sábado não era excessão. Estávamos parados numa fila imensa tentando alcançar a Anchieta, e olhando pro lado, no portão de uma casinha pequena, vi algo no mínimo "digno de nota". Um sujeito na casa dos 50 anos, de bermuda, sem camisa e naquele calor de 33º C usava um chapéu peludo, com estampa de oncinha. Parecia muito tranquilo fazendo um trabalho manual que eu ignoro o que era, algo com uma mangueira plástica e uma faca. Parei pensando naquilo, era uma imagem de bucolidade tão explícita que me comoveu de certo modo, mudando meu humor automaticamente de "Com sono e indiferente" para "Contemplativo e profundo". Passei a me sentir bem daquele momento em diante.

A viagem seguiu.

2º Buda Cotidiano: O cachorro atropelado

Cena comum na estrada, a certa altura da viagem, olhei pro acostamento oposto ao meu e vi com tristeza um irmão canino atropelado e morto. Na mesma hora fiz uma prece louvando Amida, o buda da Misericórdia e senti tristeza profunda por aquela criatura indefesa que provavelmente morreu sozinha e agonizante na beira daquela estrada. Refleti brevemente sobre a inconstância da vida e a inevitabilidade da morte, e então me conformei com o destino reservado ao quadrúpede fiel.

3º Buda Cotidiano: O cachorro andarilho

Já perto do nosso destino, vendo no horizonte montes verdes e bosques frescos, deparei-me com um cachorro comendo algo na beira da estrada, o que era eu não sei, estava numa sacola de plástico branca, provavelmente lixo. Pensei na sina do primeiro cachorro e desse segundo, quão diferentes e quão parecidas seriam? Estaria meu segundo irmão canino fadado ao mesmo destino do primeiro, e o primeiro, estivera também comendo dum lixo semelhante dias antes de sua morte? O homem ignora o sofrimento alheio de tantas formas que eu me desconcerto. Fiz uma prece silenciosa pela segunda vez à Amida pedindo pela segurança do cão que comia lixo.

4º Buda Cotidiano: As cruzes de madeira

Passamos da entrada que deveríamos pegar para chegar ao sítio de tia A e tivemos que avançar 3 quilómetros na estrada para dar a volta, numa curva, vi 3 cruzes de madeira, cada uma com um nome, dos quais não me lembro mais. Cada uma das cruzes representava uma pessoa que havia morrido naquele lugar. Fiz uma prece e tentei imaginar que tipo de pessoas seriam os desencarnados, numa tentativa vã de imortaliza-los por mais um instante, mas falhei, minha mente logo foi atraída para algo mais interessante. As cruzes no entanto permanecem lá, duras e frias, meditativas, representando os 3 mortos daquela curva, representando 3 pequenos budas de madeira.

5º Buda Cotidiano: Tio A

Tio A era marido de tia A. Viviam naquele sítio a um bom tempo, com uma filha pequena de uns 8 anos. Eu não estava em contato com a família nos últimos anos, por isso todos pareciam deformados e diferentes do que eu lembrava, as cores e cheiros também, as roupas, os semblantes. Tio A era o mais diferente, e ainda assim o mais igual. Busquei na memória e me lembrei dele há tempos atrás, cabelos castanhos e um bigodinho de escovinha que ele usou por anos. Agora, de cabelo grisalho e sem bigode, ainda tinha o mesmo ar divertido de antes. Contou histórias engraçadas durante o churrasco e as cervejas. Parecia de alguma forma um pilar no qual a família se apoiaria em breve. Guardei esse pensamento.

6º Buda Cotidiano: O caçador

Meu avô é um ancião de mais de 80 anos, alto e forte, como só eu consigo me lembrar. Era ele quem costumava reunir todos a sua volta e contar as histórias engraçadas, mas não agora. Perdeu minha avó há 2 anos e desde então tem dados sinais sutis de senilidade. Sinto-me triste por isso. Olhei para ele em determinada hora do churrasco, estava sozinho sentado numa cadeira confortável, cochilava tranquilo. Um buda de paz. Tive que fazer uma reverência invisível, tive que honra-lo, tive que respeita-lo, pois aquele caçador de pássaros era uma das únicas 6 razões para eu estar aqui, as outras 2 sendo meus pais e as outras 3 que já partiram, minhas avós e meu outro avô.

7º Buda Cotidiano: O bebê

Tio B, irmão de minha mãe, teve sua primeira filha recentemente, uma menininha pequena de olhos grandes e olhar inteligente. A garotinha fitou-me longamente e alguém a interrompeu apontando para os cães e dizendo.
-Olha o Au-Au!
Eu esperei que ela me olhasse de volta e disse no tom mais explicativo que consegui.
-Não é Au-Au, é cachorro. Parece mais fácil dizer Au-Au, mas é uma armadilha, vão te repreender daqui uns anos se você disser Au-Au, o certo é cachorro.
Ela não aguentou o peso da realidade e ameaçou chorar, incrível, não tinha chorado uma única vez o dia todo. Todo mundo ressaltava o fato dela ser um bebê tão quietinho, aí eu troco umas palavras com ela e a menina chora. Uma pequena buda que não vai gostar de mudanças no futuro, foi o que eu vi, mas ainda assim, um bebê tão bonzinho, só pode ser um buda.

8º e 9º Budas Cotidianos: Primas C e D

São irmãs. Ambas bonitas, ambas inteligentes e ambas religiosas. Ah sim, e ambas solteiras, perto dos 30. A irmã mais nova das duas casou-se há 1 mês, e por alguma razão, talvez por não vê-las a muito tempo eu senti o semblante das duas, no mínimo mais rígido do que antes. C segurava o bebê com tamanho cuidado que poderia jurar que fosse seu, e além disso, cantava com uma voz triste e cheia de significados. D por outro lado, era quase invisível, o tempo todo ao lado da mãe, sentada, comportada, sem dizer uma palavra, com uma cara desanimada e linda. Pensei nelas com carinho, gostava de minhas primas. Pensei nelas como dois budas de esperança e comedimento, dois budas de paciência e devoção, enfim, pensei nelas como duas pessoas que terão o que querem, mas talvez, não quem queiram.

10º Buda Cotidiano: Meu irmão

Quando saímos de lá, já estava escuro e tínhamos bebidos algumas cervejas, meu irmão umas 5, eu umas 15, mas isso no decorrer do dia todo, o que não nos colocava em grande risco no caminho de volta. Claro que com 15 cervejas na cabeça, até eu começo a falar e logo no começo do caminho começamos a conversar, falamos bastante e nos calamos uma parte do caminho, depois já perto de casa, começamos a falar de novo. Pensei em como somos parecidos, de formas que eu não gostaria que fossemos e como somos diferentes, de maneiras que eu até gosto. Ele me contou uma ou outra coisa que não vou escrever aqui, mas deu a entender que ele é só um cara como todos os outros, inclusive eu. Um buda de simplicidade, um buda de sonhos despedaçados, um buda de profundidade.

Somos todos budas, aprendi isso e nunca mais esqueci, cada um a sua maneira, independente de religião ou o que quer que seja, todos temos nossa parcela de sentimentos profundos e complexos que jamais vamos conseguir explicar pra algumas pessoas, e que outras vão entender apenas nos olhando nos olhos. Todos temos a centelha de uma alma incendiária dentro de nós, essa alma mística que nos leva a lugares inesperados, até mesmo numa viagem de um dia como essa minha. E pensar que eu viajei além do interior Paulista naquele sábado, fui até o infinito e voltei, tudo por causa de um sujeito com chapéu de oncinha...

By Gordon Banks (26/11/2007)

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Olhos verdes, olhos verdes...

Ele a segurou pela cintura e olhou no fundo dos seus grandes olhos verdes, e foi aí que o devaneio começou...

- Você ficou linda no vestido. - Ele disse encabulado, mas confiante.
- Nós não nos falamos há 3 anos. - Ela respondeu seca.
- Não sei porque me afastei.
Ela olhou ao redor desconfortável, ninguém podia ouvir aquela conversa.Disse.
- Você foi embora porque nós não podíamos ficar juntos.
- Deve ter sido isso, ou talvez porque eu não acredite mais nos contos de fadas...
- Triste ouvir logo você dizer isso.
Ele olhou ao redor, os rostos paralizados, os sorrisos eternos, como fotografias, ninguém tinha idéia do que se passava...
- Você vai virar personagem num de meus contos...uma rainha...rainha da fadas!
- Como vou saber que sou eu?
- Vou usar seu nome.
- As pessoas não são burras, saberão que sou eu.
- Não me importo. Não mais. Tarde demais, acho...
Ela se emocionou, e lágrimas brotaram de seus olhos imensos e expressivos.
- Eu te... - Ela o interrompeu, colocando sua mão sobre a boca e inibindo as palavras.
- Em outra vida. - Ela disse suave.
- Em outras. - Ele assentiu.

E acabou-se o devaneio, tudo passou a se mover naturalmente de novo, as pessoas, os risos, tudo...e ela estava lá ainda, parada, linda, deslumbrante, olhando pra ele.
- Fiquei muito feliz de você ter vindo! - Ela disse.
Ele tentou balbuciar algo, não encontrou as palavras.
- Felicidades. - Ele disse finalmente, com um sorriso triste no rosto. E saiu da fila, para que as outras pessoas pudessem cumprimentar os noivos.

Jurou pra si mesmo que nunca ia falar sobre isso com ninguém, que nunca escreveria nada a respeito, mas não pode se conter...era difícil gritar com a boca fechada.

"Você foi a primeira a me beijar,
foi a primeira a me querer,
foi a primeira a me dizer "eu te amo",
foi a primeira a me deixar."

Eu vou sempre procurar por eles...olhos verdes, olhos verdes...
 
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